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ISSN: 2595-8402

Journal DOI: 10.61411/rsc31879

REVISTA SOCIEDADE CIENTÍFICA, VOLUME 7, NÚMERO 1, ANO 2024
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ARTIGO ORIGINAL

Os novos estudos do letramento no Brasil e a narrativa cinematográfica na aula de língua portuguesa

Virna Pereira Teixeira1; Catarina de Sena Sirqueira Mendes da Costa2

 

Como Citar:

TEIXEIRA; Virna Pereira, COSTA; Catarina de Sena Sirqueira Mendes da. Os novos estudos do letramento no Brasil

e a narrativa cinematográfica na aula de língua portuguesa. Revista Sociedade Científica, vol. 7, n. 1, p.72-108 , 2024. https://doi.org/10.61411/rsc202417617

 

DOI: ​​ 10.61411/rsc202417617

 

Área do conhecimento: Ciências da Saúde

 

Palavras-chaves: Letramentos, Narrativa cinematográfica, Língua Portuguesa, União Europeia.

 

Publicado: 03 de janeiro de 2024

Resumo

Em geral, as pesquisas no campo dos Novos Estudos do Letramento, doravante NLS, quando se referem ao contexto educacional brasileiro, privilegiam a microetnografia e a análise de práticas/eventos na qual o texto verbal assume maior protagonismo. Nessa investigação, busca-se, a partir das contribuições dos mais proeminentes autores dos NLS, estabelecer relações entre a apreciação da narrativa cinematográfica nas aulas de Língua Portuguesa e os letramentos sociais. Com efeito, procedeu-se ao cotejamento de trabalhos que propõem o entrecruzamento de práticas envolvendo o artefato fílmico e a língua materna, à luz de orientações baseadas em concepções acerca do letramento (s). Observou-se, destarte, que o uso de narrativas cinematográficas nas escolas brasileiras, segundo os resultados das pesquisas realizadas, é constituído por iniciativas de natureza particular, nas quais se destacam, sobretudo, o engajamento dos estudantes e a ampliação da compreensão leitora. Infere-se, todavia, que a escrita e a oralidade, em um continuum, podem ser aprofundadas nesses eventos escolares, tendo como parâmetro ainda, em termos de política pública, a incorporação institucional das narrativas cinematográficas nas salas de aula, tal como se afigura nos países que compõem a União Europeia.

 

 

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Abstract

Research in the field of New Literacy Studies (henceforth NLS), when referring to the Brazilian educational context, favors micro-ethnography and the analysis of practices/events in which the verbal text plays a leading role. Based on the contributions of the most prominent authors of the NLS, this research seeks to establish relationships between the appreciation of cinematographic narratives in Portuguese language classes and social literacy. In effect, we compared works that propose the intertwining of practices involving the filmic artifact and the first language, in the light of guidelines based on conceptions of literacy(ies). It was observed, therefore, that the use of cinematographic narratives in Brazilian schools, according to the results of the research conducted, is made up of initiatives of a particular nature, in which the engagement of students and the expansion of reading comprehension stand out. It can be inferred, however, that writing and orality, in a continuum, can be further developed in these school events, with the further parameter, in terms of public policy, being the institutional incorporation of cinematographic narratives in classrooms, as is the case in the countries that make up the European Union.

Keywords: Literacy, Cinematic narrative, Portuguese language, European Union.

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1. Introdução

Em um artigo intitulado Os Novos Estudos do Letramento e a “virada social”, Gee [1] afirma que o campo de investigação conhecido como NLS (New Literacy Studies), cujos expoentes mais destacados foram David Barton, o próprio James Gee, Brian Street e Shirley Heath, fazia parte de um movimento mais amplo, por ele denominado como virada social. As pesquisas, até os anos 80, no campo das humanidades, privilegiavam o estudo do indivíduo, seja no plano comportamental ou cognitivo. Por outro lado, os trabalhos publicados nessa guinada decidiram tomar como objeto de estudo a interação e as práticas sociais. Nesse sentido, para os NLS, de acordo com Gee [1], as acepções de leitura e escrita só poderiam ser analisadas sob o prisma do contexto social, cultural, histórico e político.

A virada social constituía uma reação ao comportamentalismo e à “revolução cognitiva” dos anos 60 e 70. Havia também um sentimento progressista que unia todos esses movimentos, os quais buscavam, em última instância, desnudar as relações desiguais de poder e injustiça social presentes em diversos espaços institucionais. No que concerne aos estudos do letramento, mais especificamente, o autor reafirma, em seguida, a importância da ressignificação do conceito de contexto, situado em uma associação constitutiva com as palavras, na qual ambos, contexto e palavras, só produzem sentidos quando concatenados. Como uma simbiose, as palavras e respectivos contextos funcionariam, na realidade, como espelhos que refletem suas imagens entre si.

Outrossim, Street [2] é considerado, atualmente, um dos estudiosos mais proeminentes dos NLS e trouxe uma significativa contribuição ao campo, por desenvolver as noções de modelo autônomo e modelo ideológico de letramento. No modelo autônomo, segundo o autor, predomina a visão da língua abstraída de sua realidade social, em que a aquisição do código escrito, de modo universal, ocorre graças às aptidões individuais e é responsável por elevar os sujeitos a patamares civilizatórios “superiores”. Ou, como propõe Terra [3, p.34], “O modelo autônomo tem como característica o fato de abordar o letramento como uma realização individual, ou seja, o foco concentra-se no indivíduo e não em um contexto social mais amplo no qual o indivíduo opera”.

Já o modelo ideológico de letramento nega a divisão oralidade versus escrita e concebe as práticas de letramento como constructos em que a relação escrita-leitura e estruturas culturais, ideológicas é indissociável. A esse respeito, Street [2, p. 17] ​​ afirma que “[...] uma mudança importante foi a rejeição por vários autores da visão dominante do letramento como uma habilidade ‘neutra’, técnica, e a conceitualização do letramento, ao contrário, como uma prática ideológica, envolvida em situações de poder e incrustada em significados e práticas culturais específicos [...]”.

Cabe frisar que, embora a distinção entre modelo autônomo de letramento e modelo ideológico apresente óticas divergentes no tocante ao objeto de estudo, elas não devem ser vistas, ​​ necessariamente, como antagônicas. Como assegura Street [2, p. 174], “O modelo ideológico, por outro lado, não tenta negar a habilidade técnica ou os aspectos cognitivos da leitura e da escrita, mas sim entendê-los como encapsulados em todos culturais e em estruturas de poder”.

No modelo ideológico, portanto, o enfoque do letramento em uma dimensão singular não se justifica, haja vista que as práticas de letramento são numerosas, assim como seus propósitos comunicativos e realidades sociais que as caracterizam. Daí a adoção do termo letramentos sociais, abordagem que o autor confere a esse objeto de investigação para referir-se à pluralidade e complexidade do fenômeno. No presente trabalho, a visão de Street² sobre o modelo ideológico de letramento e sua natureza plural é aqui tomada como base da pesquisa empreendida sobre as relações entre os NLS no Brasil e a narrativa cinematográfica em sala de aula.

Kleiman [4], por sua vez, afirma que o termo letramento foi cunhado pela primeira vez no Brasil por Mary Kato, no ano de 1986, em sua obra “No mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística”. Nesse trabalho, Kato [5] sustenta que a fala e a escrita são parcialmente isomórficas e isofuncionais, sendo que, em um primeiro momento, a escrita busca a representação da fala, não de maneira idêntica, e, em uma fase seguinte, é a fala que tenta reproduzir, de forma parcial, a escrita.

Seguindo a linha de argumentação de Kato [5], a fala₁ constitui a etapa do pré-letramento e a escrita₁, como afirmado anteriormente, seria o retrato, na medida do possível, dessa fala natural. Já a escrita₂, governada por convenções fixas, teria mais autonomia em relação à fala e a fala₂, finalmente, consubstanciaria o resultado do letramento (a incorporação das normas de padronização da língua encontra-se atrelada à visão de letramento da referida autora).

É necessário destacar ainda que a escrita e a fala (frise-se, não há aqui menção ao conceito de oralidade, nem mesmo como palavra de sentido semelhante à fala) são tratadas como duas ordens simbólicas. Por mais que a escrita, a segunda ordem, conforme Kato [5], decorra da primeira ordem, a fala, a simetria idealizada, entre os sons de fala e o alfabeto, não se concretizou. Ademais, embora escrita e fala apresentem diferenças formais, como afirma a autora, ambas são expressões de uma só gramática, que codifica os mesmos intentos retóricos de uma língua.

Vale sublinhar, antes de avançar nas análises sobre os estudos do letramento no Brasil, a distinção entre fala e oralidade proposta por Marcuschi [6]. Para esse autor, a oralidade corresponde às práticas sociais, interativas, que possuem finalidades comunicativas, as quais são estruturadas por meio de gêneros textuais sonoros e são variáveis quanto ao registro, formal ou informal, dependendo do contexto de uso. A fala, por outro lado, “seria uma forma de produção textual-discursiva para fins comunicativos na modalidade oral [...], sem a necessidade de uma tecnologia além do aparato disponível pelo próprio ser humano” (Marcuschi [6, p. 24]). Essa definição de fala, como o próprio autor ressalta, também é aplicada às línguas de sinais, apesar de o componente sonoro não atuar nelas de forma decisiva. ​​ 

Soares [7] observa, por seu turno, que o surgimento do letramento, tal como o concebemos após os NLS, ocorreu, praticamente, de modo simultâneo, em sociedades diferentes e geograficamente distantes. Cronologicamente, a autora afirma que, na metade dos anos 80, a “invenção” do letramento se dá, concomitantemente, no Brasil, na França e em Portugal (literacia). Na realidade, como adverte Soares [7], ao final dos anos 70, a UNESCO, Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura, havia modificado o conceito de alfabetizado/a para alfabetizado/a funcional, com o propósito de não reduzir a percepção do indivíduo alfabetizado, unicamente, à medida de sua capacidade cognitiva de leitura e escrita.

Nesse período de nascedouro, as concepções sobre letramento nos Estados Unidos, Inglaterra e França, por exemplo, como detalha a referida autora, não se confundem com o significado de alfabetização. Ao contrário do que ocorre no exterior, as primeiras publicações sobre letramento no Brasil, entre os anos 80 e 90, associam, diretamente, alfabetização e letramento. Obras como “Adultos não alfabetizados: o avesso do avesso”, de Leda Verdiani Tfouni [8], “Alfabetização e letramento”, de Roxane Rojo [9], “Os significados do letramento”, organizada por Ângela Kleiman e “Letramento: um tema em três gêneros”, de Magda Soares [10], são listadas por Soares para evidenciar as preocupações que cercavam importantes autoras e autores brasileiros quanto aos elevados índices de analfabetismo predominantes naquele momento. Daí surge, entre nós, como reflete a autora, a frequente e equivocada analogia que se opera entre os dois termos, alfabetização e letramento, o que prejudica a compreensão das especificidades de cada um desses conceitos e respectivos tratamentos didáticos.

A profusão de definições sobre letramento no Brasil é abundante. Não se pretende nesse trabalho cotejá-las à exaustão, por mais que sua sondagem, amiúde, seja bastante profícua. Destarte, na seção seguinte, são apresentados conceitos de letramento que compartilham a perspectiva dos NLS no país, para, logo após, analisar o campo de estudos em que se identificou investigações robustas sobre os letramentos sociais, ensino de Língua Portuguesa e narrativa cinematográfica. Há, igualmente, uma reflexão acerca do tratamento normativo e pedagógico dado pela União Europeia à inclusão do audiovisual em sala de aula, o que pode contribuir para fortalecer essa discussão no âmbito da educação básica do país.

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2.Letramentos sociais no contexto brasileiro e seu intercâmbio com a escolarização

No cenário dos letramentos sociais do país, a abordagem discursiva de Leda Tfouni sobre letramento é singular. Ainda nos anos 90, a autora afirmava que o termo letramento traduzia um processo de natureza sócio-histórica. Opondo-se a uma concepção, estabelecida, que resumia o letramento ao seu “produto”, ou seja, a aquisição de leitura e escrita, Tfouni [11] acrescenta à formulação de letramento a noção de autoria. Sem, necessariamente, correlacionar letramento à alfabetização e escolarização, a autoria, para Tfouni [11] é central ao letramento, porque fixa a sua dimensão sócio-histórica e estabelece que tanto a organização do intradiscurso (oral ou escrito) quanto a orientação dos efeitos de sentido obtidos na recepção do texto são incumbências do autor.

Apoiando-se em Scribner e Cole [12], Ângela Kleiman [4, p. 19], por outro lado, acentuará, em sua acepção, o componente social das práticas letradas, “Podemos definir hoje o letramento como um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, como sistema simbólico e como tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos”. Soares10, com efeito, reconhece que o consenso em torno de um conceito de letramento, capaz de dar conta das inúmeras complexidades sociais e individuais envolvidas nas relações entre escrita/leitura e oralidade, não é plenamente possível, dadas as questões políticas e ideológicas que tecem esse fenômeno.

Apesar disso, ela reitera a necessidade de discutir esse problema em termos conceituais, a fim de que o letramento possa ser avaliado e medido. Com o objetivo de evidenciar o modo como interpreta o letramento, Soares [10, p. 41] transcreveu nessa obra o poema de uma estudante norte-americana, Kate M. Chong, no qual há um relato pessoal de sua história com o universo do letramento, abaixo reproduzido,

 

O QUE É LETRAMENTO?


Letramento não é um gancho

em que se pendura cada som enunciado,

não é treinamento repetitivo

de uma habilidade,

nem um martelo

quebrando blocos de gramática.

 

Letramento é diversão

é leitura à luz de vela

ou lá fora, à luz do sol.

 

São notícias sobre o presidente,

o tempo, os artistas da TV

e mesmo Mônica e Cebolinha

nos jornais de domingo.

 

É uma receita de biscoito,

uma lista de compras, recados colados na geladeira,

um bilhete de amor,

telegramas de parabéns e cartas

de velhos amigos.

 

É viajar para países desconhecidos,

sem deixar sua cama,

é rir e chorar

com personagens, heróis e grandes amigos.

 

É um atlas do mundo,

sinais de trânsito, caças ao tesouro,

manuais, instruções, guias,

e orientações em bulas de remédios,

para que você não fique perdido.

 

Letramento é, sobretudo,

um mapa do coração do homem,

um mapa de quem você é,

e de tudo que você pode ser.


 Observa-se, de antemão, que a primeira estrofe do poema dialoga de modo muito produtivo com a concepção de letramento proposta por Tfouni
[11]. Ao afirmar que letramento “não é treinamento repetitivo/de uma habilidade”, Kate M. Chong enfatiza o caráter processual do letramento e não o seu produto. É também, como interpreta Soares [10, p. 44], uma forma de estabelecer diferenças entre a alfabetização, ligada apenas à aquisição do código da escrita e leitura, e o letramento, “o estado ou condição de quem se envolve nas numerosas e variadas práticas sociais de leitura e de escrita”.

Ao mesmo tempo, como descreve a autora desse poema, sob a noção de fluxo, devem ser incorporados ao termo letramento os aspectos lúdicos, funcionais (comunicativos) e interativos da linguagem, em suas modalidades oral e escrita. Nas duas últimas estrofes, Chong conclui sobrelevando o caráter imagético do letramento, bem como suas propriedades referenciais e identitárias.

Ademais, Soares [10] reflete acerca da utilização da palavra alfabetismo no lugar de letramento. Segundo a autora, alfabetismo, é um vocábulo que já se encontrava, à época, nos anos 90, dicionarizado no Brasil, ao passo que letramento ainda não havia adquirido essa posição. Como condição ou estado de quem se alfabetizou, o alfabetismo, conforme argumenta Soares [10], seria um conceito mais apropriado para o uso no Brasil, haja vista que letramento carregaria uma delimitação mais intrincada. Sobre a possibilidade de substituição de letramento pela definição de alfabetismo, Rojo [13] mostra discordância,

No entanto, vale a pena insistir na distinção: o termo alfabetismo tem um foco individual, bastante ditado pelas capacidades e competências (cognitivas e linguísticas) escolares e valorizadas de leitura e escrita (letramentos escolares e acadêmicos), numa perspectiva psicológica, enquanto o termo letramento busca recobrir os usos e práticas sociais de linguagem que envolvem a escrita de uma ou de outra maneira, sejam eles valorizados ou não valorizados, locais ou globais, recobrindo contextos sociais diversos (família, igreja, trabalho, mídias, escola, etc.) numa perspectiva sociológica, antropológica e sociocultural (Rojo [13, p. 98]).

 

Nessa acepção de Rojo [13], reitera-se a dimensão social e cultural das práticas de linguagem, a partir da escrita, como critério mais influente para demarcar a noção de letramento. É interessante notar o acento dado pela autora quanto à hierarquia social em que esses usos e práticas são geralmente enquadrados, “valorizados ou não valorizados, locais ou globais”. Sob uma ótica bourdieusiana, tais expressões são indicadores do nível de poder simbólico e capital linguístico que os indivíduos possuem, ou seja, o domínio da norma-padrão de uma língua, por exemplo, “autorizaria” o acesso aos espaços institucionais mais prestigiados da sociedade. A aquisição de uma língua estrangeira, como o inglês, do mesmo modo, garantiria vantagens linguísticas e, provavelmente, econômicas, às pessoas que disponham desse tipo de capital. ​​ 

Já para Bortoni-Ricardo [14, p. 225], letramento, em sua dimensão mais ampla, “é entendido como o acervo de conhecimento produzido, transmitido e acumulado por meio da escrita na sociedade e de seu impacto sobre ela, incluindo aí o desenvolvimento social que acompanhou os usos da escrita desde o século XVI”. Em seu sentido estrito, por outro lado, a autora (Bortoni-Ricardo [[14, p. 225]) argumenta que o letramento “[...] refere-se ao conjunto de estratégias usadas na redação e leitura de vários gêneros textuais, especialmente os empregados na produção e divulgação do conhecimento acadêmico”.

Ao lado dessa distinção, Bortoni-Ricardo [15] trata também do termo culturas de letramento, para aludir ao uso de letramento no plural. Uma cultura de letramento, na acepção da autora (Bortoni-Ricardo [15, p. 43]), é formada por práticas sociais nas quais “[...] as pessoas se apoiam em textos escritos e lidos ou lidos e preservados na memória”. Em tais formulações, que não subestimam a historicidade das práticas e eventos de letramento, a incorporação das ideias de gênero e memória denotam uma visão peculiar e, ao mesmo tempo, abrangente dos fenômenos que contemplam a escrita/leitura e oralidade.

A referência aos gêneros textuais e à memória, parece-nos, uma orientação teórica que busca implicar questões de caráter pedagógico e cognitivo aos estudos sociais do letramento. A respeito da pedagogia do letramento na abordagem funcional, Kalantzis, Cope e Pinheiro [16] afirmam que os gêneros atuam no sentido de construir pontes entre tipos textuais relativamente estáveis e objetivos sociais. Regulados por interações sociais e culturas determinadas, “[...] gêneros são intervenções textuais na sociedade, pois não são simplesmente criados por indivíduos no momento de sua enunciação; representam padrões familiares de significado, criados socialmente para propósitos comunicativos específicos” (Kalantzis; Cope; Pinheiro [16, p. 128]).

Ao lado disso, como acrescentam os referidos autores, aprender novos gêneros garante aos indivíduos acesso a certos domínios, influência e poder social. Em síntese, compreender a organização dos gêneros textuais, sua funcionalidade e os condicionantes sociais que se materializam tanto na estrutura quanto na expressão comunicativa, não apenas amplia o escopo de investigação dos eventos e práticas de letramento; a pedagogização desses conhecimentos é fundamental para o desenvolvimento de habilidades e competências letradas absolutamente indispensáveis à vida contemporânea.

A memória, como preservação do conhecimento adquirido por tecnologias da escrita, é um aspecto importante para a discussão dos letramentos sociais, o que, paradoxalmente, tem se mostrado um tema pouco investigado nessa área. Sabe-se, contudo, que a memória incorporada ao discurso oral era tratada como arte na Roma Antiga. Fazia parte, inclusive, de tratados clássicos sobre retórica. Nessa época, conforme observa Scatolin [17], a escassez de suporte material para a escrita e a ausência de índices temáticos ou onomásticos nos livros contribuíram para que muitos textos fossem confiados à memória dos oradores.

Além disso, desde pequenas, as crianças da elite romana eram incentivadas a memorizar conteúdos de gramática e literatura. Em Retórica a Herênio, cujo autor e data não são conhecidos com precisão, como parafraseia Scatolin [17], a metáfora do tesouro, aplicada à memória, pode tanto apresentar o sentido literal de tesouro, enquanto riqueza, quanto o significado de repositório, o qual seria responsável por armazenar toda a “fortuna” linguística e imagética necessária para o sucesso de um orador.

Ryan [18], não obstante, defende que o uso da memória em sala de aula potencializa a escrita de ensaios pessoais, criativos e transformadores. Reinterpretando o cânone da memória retórica e o seu enfoque humanista, proposto por Giambattista Vico (século XVIII), a referida autora discute novas apropriações desse termo, demonstrando que a tese da grande divisão associava memória tão somente à oralidade, o que para os teóricos dessa corrente de pensamento correspondia à etapa de “pré-conhecimento”, anterior, portanto, ao estágio “civilizado da escrita”. A partir dos estudos etnográficos e culturais do letramento, a memória, na verdade, passa a ser entendida como forçosamente pertencente ao domínio de ambas, oralidade e escrita.

O conhecimento rememorado, de que Ryan [18] mais especificamente trata, possui quatro dimensões, a saber: I) material de memória; II) imaginação e interpretação; III) contexto e subjetividade e IV) transformação. Para iniciar o processo de memorização, como explica a autora, é necessário acessar o acervo do material de memória, composto por imagens, impressões, associações. Em um segundo momento, a imaginação e interpretação são requeridas para dar sentidos ao material de memória, promovendo conexões entre as experiências passadas e o presente.

Já o contexto e a subjetividade constituem os elementos que influenciarão a maneira como se dá a lembrança. Tempo, lugar e a posição do sujeito que lembra são variáveis que conformam um dado recuperado, enunciando, retoricamente, o modo que o indivíduo percebe seu passado e o relaciona com o presente. Na fase final de construção do conhecimento rememorado, encontra-se a transformação, que, ao se opor à técnica de memorização estática e passiva, contempla uma ideia de intervenção na realidade, com vistas à mudança, e à alteração da própria subjetividade [18].

Por fim, de acordo com a citada autora, o trabalho com a rememoração em sala de aula facilita o ensino de gêneros textuais baseados na memória, assim como estimula a interpretação, reflexão e autoria, na medida em que subsidia, ativamente, a maneira como os estudantes constroem suas visões de mundo.

Na dimensão da cognição e do discurso, Paveau e Goldstein [19], por seu turno, atribuem à memória uma função particular nas redes de significação engendradas historicamente. É uma visão, inclusive, que ultrapassa a percepção da memória como mero espaço de estocagem de informações semânticas e enciclopédicas. Na formulação das referidas ​​ autoras, a chamada memória cognitivo-discursiva, atuando na transmissão desse “reino de significações”, é a que

[...] elabora as linhagens discursivas, as quais podem ser definidas como dispositivos representacionais internos e externos, permitindo acolher e transmitir conteúdos semânticos ligados aos saberes, crenças e práticas. Isso quer dizer que existem “lugares de memória” discursivos e cognitivos (Paveau; Goldstein [19, p. 326]).

 

Ao explorar esses “lugares de memória”, constituídos no âmbito individual e social, a tessitura da oralidade e da escrita faz emergir reconhecimentos, heranças ancestrais e laços afetivos, instituindo, do mesmo modo, pontes para a conformação de identidades que, em termos fenomenológicos, são capazes de interagir e transformar as culturas nas quais elas se alicerçam.

Nessa direção, acredita-se que, tanto no nível da compreensão textual quanto no nível da escrita, a ativação, evocação dos lugares plurais de memória que perfazem o universo de estudantes da Educação Básica, em específico, não contribui somente para o resgate de identidades fragilizadas ou cambiantes. Na realidade, a mobilização de inferências no processo de leitura, seja ele verbal, imagético ou híbrido, parte, inicialmente, de um lugar de memória, o qual será tanto mais denso significativamente se as estratégias de leitura envolvidas nesse ínterim promoverem conexões adequadas, do ponto de vista cognitivo, discursivo e sociointeracional. A escrita, assim, resultante do acesso “rememorativo” e de inferências não falseadas, sobretudo, pode recuperar sua cadência e tornar-se mais expressiva, autoral.

Para Botelho e Vargas [20, p.4], a inferenciação deve ser entendida como “[...] um processo cognitivo básico de construção de significados, consequência, na leitura, da integração de duas fontes de informação: a informação visual (texto) e o conhecimento prévio”. Evidentemente, para haver inferenciação, não basta a decodificação do texto visual; a base da significação passa, necessariamente, pela revivificação das experiências corpóreas do indivíduo (parte da estrutura do conhecimento prévio).

Com efeito, a reativação dessas experiências, que poderia ser comparada a uma espécie de lembrança ativa, dá-se após um corte temporal, em que entra em cena o trabalho cognitivo e discursivo da memória. A organização de eventos de letramento em espaços escolares, por conseguinte, demanda atividades que aperfeiçoem a competência leitora e comunicativa, relacionando, pari passu, sensibilização visual, seleção de informação textual apropriada para faixas etárias e níveis escolares correspondentes, retomada de memórias (individuais/coletivas) e conhecimentos prévios, assim como estímulos consistentes para a prática de uma inferenciação significativamente profunda.

Em termos discursivos, ao lado da importante noção de autoria, Tfouni, Monte-Serrat e Martha-Toneto [21] também vinculam o conceito de memória aos estudos do letramento no âmbito escolar. Examinando a produção escrita de um aluno, as referidas autoras evidenciam que a memória particular e histórica (as quais podem ser equiparadas, para efeitos didáticos, às memórias individual e coletiva) materializadas nos discursos de estudantes, contribui para identificar as condições de classe em que vivem os discentes, suas singularidades e diferenças, além de sobrelevar a polifonia3 presente na sala de aula, frequentemente negligenciada no cotidiano escolar do país. Ou seja, nessa formulação, a memória discursiva dá voz à autoria dos sujeitos, fazendo com que a escrita possa se constituir, de igual forma, em um locus de criatividade, identidade e resistência.

Quantos aos possíveis riscos da escolarização do letramento, é importante destacar que a noção de letramento, sob o ponto de vista do modelo ideológico, por vezes, é tratada como algo que não se coaduna ao processo formal de educação, devendo recobrir, na realidade, as práticas e eventos de letramento não marcados pelo modelo autônomo, os quais ocorrem, majoritariamente, fora da sala de aula.

Contudo, Rojo [23] defende que a escola é letramento, portanto, a formação composicional adjetivada “letramento escolar” é absolutamente necessária para a compreensão do discurso através do qual funciona o letramento escolar, bem como para investigar quais são as capacidades letradas que tal discurso constrói. Essa tessitura, que se erige aos moldes dos diálogos entre mãe e filho, observados por Heath [24], deve ser identificada, sobretudo, por intermédio dos eventos dialogais da sala de aula (Rojo [23, p. 245]).

 Ainda em relação à incorporação dos estudos do letramento ao contexto escolar, na dimensão social e ideológica, faz-se necessário, segundo Kleiman [25], readaptar os currículos vigentes. É preciso mudar o ponto de partida das estratégias de ensino, como afirma a referida autora, e adotar uma postura mais reflexiva, identificada com o cotidiano dos estudantes,

Quando o conteúdo (qualquer que seja) não constitui o elemento estruturante do currículo, a pergunta que orienta o planejamento das atividades didáticas deixa de ser “qual é a sequência mais adequada de apresentação dos conteúdos linguísticos, textuais ou enunciativos?” porque o professor, com conhecimento pleno dos conteúdos do ciclo e ciente de sua importância no processo escolar, passa então a fazer uma pergunta de ordem sócio-histórica e cultural: “quais os textos significativos para o aluno e sua comunidade?” (Kleiman [25, p. 6]).

 

 Em outros termos, Rojo [13, p. 115] observa que cabe à escola, na contemporaneidade, estabelecer o diálogo, na acepção polifônica bakhtiniana, entre textos/enunciados/discursos das culturas locais com as culturas mais valorizadas, como as cosmopolitas e patrimoniais, visando, sobremodo, a reivindicação de espaços igualitários de poder para as lutas locais.

Além disso, Rojo [13, p. 119], ao relacionar o conceito de letramentos multissemióticos, isto é, a leitura e produção de textos que associam oralidade, escrita, música, imagens e movimentos corporais, ao trabalho docente na escola, assegura que “Assim, impõe-se trabalhar com os impressos, mas também com as mídias analógicas (TV, rádio, vídeos, cinema, fotografia) e, sobretudo, com as digitais, já que a digitalização é o futuro da informação e da comunicação”.

No que diz respeito à formulação letramento escolar, segundo Castanheira [26], tal definição compreende os usos, práticas e significados da língua escrita que se efetivam no âmbito escolar. Ou seja, tanto a escrita quanto a leitura, para a referida autora, são processos que se realizam de modo diverso no espaço escolar, cujos propósitos são definidos de acordo com as especificidades de cada instituição de ensino.

Assim, conforme Castanheira [26], há a assunção de que tanto as práticas quanto os eventos de letramento que ocorrem fora da escola são distintos do letramento escolar porque os contextos e situações comunicacionais que os envolvem são outros e múltiplos; logo, para reduzir as distâncias que separam a escola da vida cotidiana dos discentes, inseridos em dinâmicas plurais de letramento, é preciso incorporar ao discurso escolar as práticas culturais e experiências linguísticas dos estudantes ainda não reconhecidas pelas instituições de ensino.

Em relação aos trabalhos mais específicos sobre letramentos escolares e Ensino Médio, notadamente, vale dizer que as publicações em nível de doutoramento nessa área, por exemplo, são bastante escassas. Nesse sentido, é relevante examinar a tese de Cardoso [27], intitulada “Letramentos escolares no Ensino Médio”, um estudo minucioso, no qual são interpretados e discutidos eventos de letramento escolar em uma instituição de Ensino Médio de Brasília – DF.

 A aludida pesquisadora coletou dados e reuniu observações sobre aulas das disciplinas de Matemática, Sociologia e Língua Portuguesa, bem como informações referentes à execução de um projeto denominado “Literatura em Cena”.  Cardoso [27] depreendeu em suas análises que as relações entre professores e alunos são assimétricas, ou seja, dominam os turnos de fala do professor nas interações orais.  Consequentemente, as práticas letradas locais não fazem parte, de fato, das práticas letradas escolares daquela instituição; ​​ os textos, filmes e músicas do universo dos alunos, por sua vez, também não são incorporados às aulas. Apenas o projeto “Literatura em Cena”, em que os estudantes são protagonistas da produção cinematográfica, revela-se como bem-sucedido, segundo a pesquisadora.

Em uma série sobre estratégias de ensino, Souza, Corti e Mendonça [28] afirmam, por outro lado, que as capacidades de leitura e escrita no Ensino Médio podem ser ampliadas caso os educadores se apropriem de práticas pedagógicas orientadas e consistentes. Com esse intuito, as referidas autoras (Souza; Corti; Mendonça [28, p. 109-110]) ​​ propõem um decálogo para o ensino da leitura e escrita no Ensino Médio, o qual, em síntese, reúne os seguintes procedimentos: 1) promover a leitura com os estudantes, socializando as preferências e gostos dos professores; 2) organizar um repertório sociocultural amplo, para que a aprendizagem dos alunos seja mais eficaz; 3) abordar os textos a partir de suas funções e gêneros; 4) expandir a visão de leitura voltada somente para o cumprimento de tarefas escolares; 5) selecionar materiais escritos como apoio, a fim de evitar que o estudante passe muito tempo, durante a aula, realizando cópias do quadro; 6) diversificar as atividades de escrita; 7) ler e comentar os textos dos alunos; 8) buscar os textos em sua fonte, ou seja, propiciar o contato direto dos estudantes com a íntegra dos textos e não apenas com o seu resumo ou comentário; 9) optar por atividades que requeiram a reflexão, análise e síntese, no lugar da simples memorização; 10) orientar os alunos a redigirem textos que façam parte de gêneros ligados ao mundo do trabalho, como currículo, carta de candidatura a emprego, entre outros.

O campo teórico dos letramentos sociais no país, nas últimas três décadas, encontrou um terreno fértil no microespaço da sala de aula. Na seara da Educação Básica, a reflexão e análise sobre as práticas envolvendo escrita/ leitura e oralidade configuraram um domínio científico importante para a busca da qualidade do ensino no Brasil. Em um movimento interdisciplinar, alfabetização de crianças, jovens e adultos, escolarização e formação de professores constituíram objetos privilegiados de investigação dos NLS nesse período e, a partir da edição dos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs [29], a multimodalidade também passou a integrar esse cenário.

Ainda que o aparato conceitual dos letramentos sociais perfile orientações nacionais próprias, influenciadas por bases epistemológicas plurais, é inegável reconhecer que a interface entre os letramentos sociais e a educação escolar vem oportunizando o desvelamento de questões linguísticas, sociais e pedagógicas que afetam, profundamente, a vida dos estudantes brasileiros. Com efeito, na seção, a seguir, a interpretação dos fenômenos que relacionam narrativa cinematográfica em aulas de Língua Portuguesa, à luz dos NLS, pretende, a partir de uma discussão baseada em revisão de literatura, evidenciar as contribuições e lacunas de pesquisas cujo horizonte reúna, em uma só dimensão, os descritores narrativa cinematográfica, letramentos e Língua Portuguesa.

 

3.Letramentos, narrativa cinematográfica e ensino de língua portuguesa: avanços e possibilidades

 Para avaliar, inicialmente, no âmbito da educação básica, o estado da arte de trabalhos que correlacionam, de algum modo, os termos letramento(s) e cinema/narrativa cinematográfica, ou ainda, multiletramentos e cinema/linguagem cinematográfica/letramento cinematográfico, a partir da grande área de conhecimento da Linguística e Letras, foram feitas pesquisas em bancos de dados científicos, como a Scientific Eletronic Library OnlineSCIELO, Google Scholar e Catálogo de Teses e Dissertações da Capes. Como critério de exclusão, não foram examinadas as publicações que versam sobre eventos de letramento com uso de filmes sob o enfoque do letramento literário e/ou ensino de línguas (estrangeiras ou Libras).

 Em relação aos resultados obtidos no Google Scholar, identificou-se duas publicações consideradas relevantes, a saber: “Expandindo o conceito de letramento” (Daley [30]) e “Letramento cinematográfico na educação: uma revisão integrativa em países do Mercosul” (Linhares; Andrade, Carvalho [31]). Na base de dados da SCIELO, por sua vez, apenas uma publicação encontrada mostrou-se mais próxima ao tema proposto, cujo título é “Saímos do cinema de alma lavada: multiletramentos e trabalho interdisciplinar na produção de curtas de acessibilidade midiática” (Kersch; Marques [32]).

 Daley30 define letramento a partir de quatro premissas: (1) a linguagem multimidiática do cinema já faz parte das práticas linguísticas cotidianas das pessoas, (2) a linguagem multimidiática do cinema elabora significados complexos que não são necessariamente resultantes do texto, (3) tal linguagem midiática mobiliza competências e habilidades diferentes na produção de conhecimento, pesquisa e ensino e (4) no século XXI, apenas serão considerados letrados aqueles que dominarem a linguagem multimidiática do cinema.

 Embora não descrevam pormenorizadamente as práticas e/ou eventos de letramento relacionados ao uso do cinema em sala de aula, Linhares, Andrade e Carvalho [31] fazem um apanhado sugestivo sobre as publicações acadêmicas dos países do Mercosul que discutem o letramento cinematográfico. Eles apontam que há poucos estudos nessa área, inviabilizando, portanto, a consolidação de uma produção científica do Mercosul. Argumentam, igualmente, que a formação da cidadania está relacionada ao letramento cinematográfico e, para tanto, é necessário que os países do Mercosul adotem esse tipo de letramento em suas políticas educacionais.

  Kersch e Marques [32], por seu turno, trazem os resultados obtidos com o Projeto Curta Capilé, desenvolvido pela Secretaria Municipal de São Leopoldo – RS, o qual contou com a participação de 24 (vinte e quatro) professores e onze escolas. Teve ainda como finalidade a formação de professores quanto ao uso de tecnologias, trabalho interdisciplinar e inclusão. Os estudantes das escolas selecionadas foram orientados a produzirem curtas-metragens, cuja culminância do projeto, a apresentação de 18 (dezoito) curtas para todos os alunos da rede, ganhou destaque nas televisões locais e junto à afiliada da rede Globo no estado do Rio Grande do Sul.

Depreende-se que as referidas autoras ressaltam somente os aspectos positivos na análise da execução do projeto pedagógico Curta Capilé. Relatam, sobretudo, a importância de trabalhar o manuseio da linguagem cinematográfica como forma de elevar a autoestima dos alunos e motivá-los para a discussão de temas sociais. Destacam também a qualidade da formação continuada de professores nesse processo. Por se tratar de um projeto interdisciplinar, mais direcionado à confecção de um gênero cinematográfico, as análises linguísticas verbais são secundarizadas, revelando que o objeto de apreciação, na verdade, é o uso da linguagem multimidiática do cinema como expressão de práticas socioculturais vivenciadas por jovens no mundo contemporâneo.

 Na busca realizada no Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES, foram analisadas as seguintes produções: “O processo de escrituração do gênero curta-metragem como ferramenta de desenvolvimento da consciência crítica”, tese de Alcione da Silva Santos [33], “Cinema brasileiro e multiletramentos: ressignificando o ensino-aprendizagem de leitura e escrita nas aulas de Língua Portuguesa”, dissertação de Camila da Costa Vieira [34], “Uma viagem pelas linguagens: práticas de leitura de filmes na sala de aula”, dissertação de José Geraldo Pereira de Jesus [35] e “Luz, câmera, emoção... uma aventura interventiva na formação de leitores proficientes”, dissertação de Andreita dos Santos Pedra de Souza [36].

 A tese de Santos [33], fundamentada nos Estudos do Letramento e Estudos Retóricos do Gênero, desenvolveu uma pesquisa-ação com estudantes de Ensino Médio de uma escola pública, situada em Areia - PB. O trabalho, de natureza interdisciplinar, envolveu professores de línguas e humanidades da instituição escolar paraibana, a partir de duas disciplinas eletivas ofertadas ao longo do ano letivo de 2019. Com a organização de 9 (nove) Oficinas de Letramento, os estudantes inscritos nas disciplinas eletivas assistiram a curtas-metragens e longas, além de produzirem gêneros escritos associados à linguagem cinematográfica, como cartaz de filme, sinopse, escaleta, roteiro e storyboard.

Na conclusão do processo, os estudantes confeccionaram, coletivamente, um curta-metragem, o qual, segundo a referida autora, contribuiu para o despertar de uma consciência crítica dos discentes acerca das condições existentes na escola para a construção de tal dispositivo. Além disso, como ela prossegue, os textos utilizados nas Oficinas de Letramento promoveram importantes discussões entre os colaboradores e uma reflexão sobre a elaboração da narrativa audiovisual.

 Em suas considerações finais, Santos [33] admite que a produção coletiva de um único artefato fílmico, o curta-metragem O Silêncio de Sara, pode ter dispersado eventuais colaborações criativas dos participantes. Além disso, cumpre observar que não foram registradas, nessa investigação, análises mais detidas sobre a escrituração dos gêneros fílmicos por parte dos estudantes e/ou reflexões acerca do papel da oralidade nesse percurso. A pesquisa, bem estruturada em termos de elaboração e sequenciação do projeto didático-pedagógico, preocupou-se, sobretudo, com a organização do curta-metragem. Porém, em nossa avaliação, as interessantes evidências em torno do processo de composição dos gêneros cinematográficos não mereceram o devido destaque nesse relevante trabalho.

 A dissertação “Cinema brasileiro e Multiletramentos: ressignificando o ensino-aprendizagem de leitura e escrita nas aulas de Língua Portuguesa”, de Camila da Costa Vieira [34], faz parte do repositório do Mestrado Profissional em Letras da Universidade Estadual de Feira de Santana – BA. Voltada para discentes do 9º ano do Ensino Fundamental de uma escola pública de Sobradinho, na Bahia, essa pesquisa-ação, assim caracterizada, propôs e discutiu uma sequência didática intitulada “Cineleituração – Cinema, leitura e produção”, que conjuga o uso de filmes brasileiros em sala de aula, sob a perspectiva dos Multiletramentos, a escrita de resenhas críticas e produção de um curta-metragem.

 Houve, nessa investigação, um investimento da docente-pesquisadora em relação ao aprimoramento dos aspectos avaliativos e autoavaliativos das resenhas críticas, confeccionadas após a exibição e leitura de filmes brasileiros. Dentre os aspectos textuais e gramaticais abordados na análise dos dados, percebe-se que, reiteradamente, são discutidos os problemas gramaticais apresentados na escrita dos estudantes. Apesar de o desenvolvimento da competência leitora ser apontado como um ponto positivo na discussão dos resultados, são escassas as considerações sobre a oralidade nos citados eventos de letramento, o que nos leva a inferir que a importância dada à expressão oral dos estudantes foi relativa.

 No que diz respeito à dissertação “Uma viagem pelas linguagens: práticas de leitura de filmes na sala de aula”, de José Geraldo Pereira de Jesus [35], sob o signo dos Multiletramentos e dos Gêneros do Discurso, além de uma apropriação teórica de um campo denominado pelo autor como Pedagogia das Cores (Rambauske [37, s.d.]), formula-se nesse trabalho uma proposta de sequência didática que contempla o cinema como gênero discursivo a ser apreciado nas aulas de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental. Em virtude da pandemia da COVID-19, conforme alega Jesus [35], a aplicação dessa sequência didática não pôde ser realizada em uma instituição escolar, seja virtualmente ou presencialmente.

 Destaca-se, nessa investigação de cunho bibliográfico, o total alinhamento à Base Nacional Comum Curricular – BNCC (Brasil [38]), com a roteirização de oficinas que se estruturam baseadas nas habilidades e competências curriculares da disciplina de Língua Portuguesa, a serem desenvolvidas nos anos finais do Ensino Fundamental. São, portanto, previstas atividades que envidam a análise semiótica/linguística dos filmes e de seus respectivos gêneros discursivos, além, obviamente, da escrituração de textos variados. Vale lembrar que tal dissertação é uma produção vinculada ao Mestrado Profissional em Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, logo, sua arquitetura é, institucionalmente, direcionada para a aplicação de conhecimentos teóricos da área de Letras à prática pedagógica na Educação Básica.

 Por fim, em “Luz, câmera, emoção... uma aventura interventiva na formação de leitores proficientes”, dissertação de Andreita dos Santos Pedra de Souza [36], na perspectiva dos NLS, Multiletramentos e dos Gêneros do Discurso, apresenta-se uma proposta pedagógica cujo eixo é uma sequência didática que explora as histórias em quadrinhos do personagem Pantera Negra, bem como sua adaptação fílmica. Quanto aos objetivos dessa sequência voltada para o ensino de Língua Portuguesa, destacam-se a expansão da competência leitora de estudantes do 8º ano do Ensino Fundamental e a discussão racial, com ênfase no debate contemporâneo sobre o papel da mulher negra na sociedade.

Associada ao Programa de Pós-Graduação do Mestrado Profissional em Letras da Universidade Estadual da Bahia, essa pesquisa, de natureza bibliográfica, também não vislumbrou uma dimensão de campo. Desse modo, apesar de fomentar a adoção do artefato fílmico nas aulas de Língua Portuguesa, a partir de uma dimensão interdisciplinar, ​​ envolvendo conhecimentos históricos, filosóficos e sociológicos, o referido trabalho não disponibilizou elementos empíricos para uma análise aplicada dos estudos do letramento.

 Com efeito, depreende-se que, na seara dos letramentos escolares, orientados pelos NLS ou Multiletramentos, a apreciação dos fenômenos linguísticos relacionados à narrativa cinematográfica é posta em segundo plano, visto que a noção de letramento cinematográfico, tida como o desenvolvimento de competências e habilidades voltadas para a interpretação e manipulação dos dispositivos midiáticos que constroem os filmes das grandes telas (School Education Gateway [39]), emerge nessas pesquisas como objeto de investigação privilegiado.

 Tal orientação ocorra, provavelmente, porque há uma gama de teorias do cinema, que ora apreendem os filmes como artefatos dotados de uma semiótica particular, ora os investigam nos termos correspondentes de uma linguagem verbal. Ademais, a valorização da semiose idiossincrática do cinema levaria, possivelmente, determinados pesquisadores, como a própria Daley [30], a postularem a existência de um letramento cinematográfico que suplanta o código verbal, mesmo sendo esse um dos componentes mais significativos e basilares da linguagem fílmica. ​​ 

Não faz parte do escopo desse trabalho examinar eventos e práticas de letramentos escolares, mediados pela narrativa cinematográfica, com o suporte do conceito de letramento cinematográfico. Interessa-nos, ​​ sobremaneira, investigar a contribuição da narrativa audiovisual fílmica para o ensino de Língua Portuguesa, à luz dos letramentos sociais. Contudo, na seção adiante, será feita uma sucinta análise das políticas públicas, promovidas pela União Europeia, que visam à expansão do letramento cinematográfico nos países que a compõem, bem como a incorporação dessa noção ao currículo de suas instituições escolares.

Acredita-se que, desse modo, a visão educacional sobre a participação das narrativas cinematográficas em salas de aula do Brasil e na América Latina não seja mais concebida como algo periférico. Considerando o âmbito geopolítico, no território ocupado por países considerados desenvolvidos, a Europa torna-se, portanto, uma referência indispensável para o tratamento dessa política educacional em nosso país, o que, por sua vez, enfatiza, igualmente, a necessidade de reformulações prementes nesse setor.

 

3.1O letramento cinematográfico como objeto curricular na união europeia

De acordo com Pereira [40], a Europa é, na perspectiva contemporânea, tributária de uma singular herança histórica, a qual reúne três fios determinantes para a atual conformação geopolítica desse continente, a saber: a ideia da polis grega, o legado da civilização romana e o cristianismo. Após a consolidação dos Estados-nação, na Idade Moderna, o autor prossegue argumentando que, para todo o mundo, a Europa também passou a significar expansão, poder e dominação.

O caráter bélico do continente europeu, cujo ápice pôde ser visto nas duas grandes guerras mundiais do século XX, sucumbiu ao desejo de paz e união que se solidificou diante de uma Europa devastada pelos confrontos armamentistas. Assim, em 1957, um pouco mais de uma década após o final da 2ª Guerra Mundial, o Tratado de Roma foi assinado por um grupo de nações do continente (Bélgica, Holanda, Luxemburgo, França, Itália e Alemanha), instituindo, juridicamente, o primeiro passo para a constituição da futura União Europeia. Nesse documento, o propósito de integração econômica e política norteou a redação do texto, tendo, além disso, como objetivo precípuo, a recuperação de seus países mediante a consolidação de uma comunidade que previa a formação de um mercado comum e a elevação da qualidade de vida dos seus cidadãos.  ​​​​ 

Com o progresso do bloco econômico, outros países aderiram à comunidade europeia nas décadas seguintes, a exemplo do Reino Unido, Irlanda, Dinamarca, Grécia, Espanha e Portugal. Ampliando direitos e garantindo êxito econômico às nações integrantes, no ano de 1993, entrou em vigência o Tratado de Maastricht, o qual funda a União Europeia, doravante UE, determinando, dentre suas competências, a circulação de uma moeda única ​​ no âmbito dos Estados-Membros e a transferência de poderes soberanos à referida União (Pereira [40]).

 Atualmente, a União conta com participação de 27 (vinte e sete) países do continente e o apoio da Comissão Europeia, uma espécie de órgão executivo subordinado ao Conselho Europeu, ​​ que possui uma série de atribuições, dentre as quais se destacam o planejamento e a execução da política educacional do conjunto de nações que faz parte da UE. Nesse espectro, em 2013, foi instituída a Agência de Execução relativa à Educação, ao Audiovisual e à Cultura para gerir programas da EU, em nome da Comissão Europeia.

Com validade até o ano de 2021, o Documento de Execução da Comissão que criou a referida Agência (2013/776/UE) foi revogado pela Decisão de Execução ​​ (2021/173/EU). Esta, por sua vez, prevê, em termos semelhantes ao documento anterior, o funcionamento da referida Agência até o ano de 2028, com atuação, de forma criativa, nas áreas da Educação e Cultura. Nesse sentido, o programa vinculado a esse setor e conhecido como Europa Criativa, implantado inicialmente em 2014, teve assegurada, legalmente, a sua continuidade nos próximos cinco anos ( EUR-Lex [41]).

De acordo com o Regulamento 2021/818/UE, aprovado pelo Parlamento Europeu, o programa Europa Criativa possui três linhas de ação: a vertente Cultura, a vertente MÍDIA e a vertente Transetorial. A vertente Cultura abarca todos os setores culturais e criativos, à exceção do audiovisual, a vertente MÍDIA envolve o setor audiovisual, somente, e a vertente Transetorial contempla todas as ações do setores culturais e criativos. ​​ Os objetivos gerais do programa são assim descritos (EUR-Lex [41]), “a) Salvaguardar, desenvolver e promover a diversidade e o patrimônio culturais e linguísticos europeus; b) Aumentar a competitividade e o potencial econômico dos setores culturais e criativos, nomeadamente do setor audiovisual”. O Regulamento discute, ainda, no âmbito da vertente MÍDIA, a necessidade de desenvolver o espírito crítico dos cidadãos por meio do letramento midiático.

 Em relação ao cinema, mais especificamente, uma das prioridades do referido programa é ampliar a audiência dos filmes europeus, sobretudo entre os jovens, o que deve incluir ações voltadas para o letramento cinematográfico. Cabe registrar que o orçamento destinado para a execução do programa Europa Criativa (2021-2027) corresponde a 2,4 milhões de euros, recursos estes que têm como propósito financiar todas as ações previstas, a exemplo da produção de audiovisuais, realização de conferências e festivais de cinema, bem como a inserção de práticas e conteúdos cinematográficos na educação formal dos Estados-membros que compõem a UE.

 Um estudo intitulado Showing films and other audiovisual content in European schools : obstacles and best practices 4​​ (European Comission [42]) traz evidências importantes para a leitura das políticas de educação cinematográfica na comunidade europeia e o tratamento dado ao letramento cinematográfico nas instituições escolares dos diferentes países. O trabalho é estruturado a partir de cinco capítulos, que versam sobre: 1) ​​ utilização propriamente dita dos filmes em sala de aula; 2) perspectivas da indústria cinematográfica e de outras instituições, públicas ou independentes, que produzem filmes; 3) ​​ direitos autorais e tratativas internacionais; 4) restrições curriculares, econômicas, legais e 5) promoção de políticas públicas para o letramento cinematográfico.

No primeiro capítulo, são apresentados dados obtidos a partir da aplicação de um questionário junto aos docentes de escolas da UE. Foram coletadas, ao todo, 6.701 respostas dos professores, os quais opinaram sobre questões relativas ao uso de filmes em sala de aula. Nas conclusões preliminares, o estudo indicou que o letramento cinematográfico não constitui um conteúdo autônomo na maioria das instituições escolares investigadas, sendo trabalhado, na verdade, de modo periférico, como componente auxiliar de outras disciplinas. Apesar disso, ​​ a maioria dos professores acredita que o letramento cinematográfico deve integrar o currículo na condição de disciplina obrigatória.

 Entre outros obstáculos apontados, grande parte dos docentes afirmou que o acesso aos filmes ainda é restrito; faltam-lhes competências técnicas para a abordagem do letramento cinematográfico e é latente o desconhecimento acerca de redes ou instituições que divulguem boas práticas sobre esse tema. Outra informação relevante diz respeito às plataformas online específicas para as escolas, bastante raras até o recorte temporal compreendido pela investigação.

Quanto às perspectivas da indústria cinematográfica, a pesquisa mostra que representantes desse setor têm interesse em disponibilizar as obras audiovisuais para jovens, atendendo finalidades educativas. Contudo, ainda que as leis existentes nos países da UE não sejam, de fato, um impeditivo para a construção dessa parceria, não há uma comunicação eficiente entre as autoridades públicas e as entidades privadas que produzem conteúdo cinematográfico.

 Acerca dos direitos autorais e tratativas internacionais, conforme o estudo, o instrumento legal que ampara o uso de filmes nas escolas da UE é a “Diretiva relativa a certos aspectos dos Direitos de autor e Direitos conexos na Sociedade da Informação" (Diretiva 2001/29/CE/ EUR-Lex [41]), também conhecida pela sigla EUCD. Embora a aplicação das leis que protegem os direitos autorais em relação ao uso de filmes em sala de aula seja variável nos Estados-membros, há, na maioria dos países, grande liberdade para a sua exibição em formatos físicos, a exemplo do DVD ou Blu-ray. Por outro lado, quanto ao streaming e/ou download de filmes, a sua adoção é regida por acordos de licenciamento próprios, verificando-se maior restrição.

Em termos de recomendações, vale destacar, a referida pesquisa afirma que, para sanar as incongruências da política de educação cinematográfica da UE, faz-se necessário tornar obrigatória a disciplina de letramento cinematográfico na instituições escolares dos países-membros que compõem o bloco europeu, tornando-o um tema transcurricular em todos os níveis de ensino. Tal medida, com efeito, proporcionaria uma unificação da legislação para a exibição da produção cinematográfica com objetivos educativos. Ao lado disso, o estudo também sugere que as universidades europeias ofertem cursos de formação inicial, continuada e pós-graduação para professores, a fim de prepará-los para atuarem com competência e confiança nos domínios de mídia, informação e tecnologias da comunicação.

 O Ministério da Educação e Juventude Nacional da França, em particular, disponibiliza uma plataforma gratuita (Lumni Cinéma), streaming ou download, de curtas-metragens e longas-metragens nacionais e estrangeiros aos professores de Ensino Fundamental e Médio de seu país. Com um catálogo de filmes elaborado por profissionais do cinema, órgãos públicos de radiodifusão e por integrantes do Ministério da Educação e Juventude Nacional e do Ministério da Cultura, em consonância com as diretrizes curriculares vigentes, os educadores podem, a partir desse acervo, contribuir para o desenvolvimento da cultura cinematográfica dos estudantes (Ministère de L’Education Nationale et de la Jeunesse [43]).

 Outras iniciativas adotadas pelo governo francês que promovem o letramento cinematográfico nas escolas são a oferta de cursos, no Ensino Médio profissionalizante (formação de técnicos para desempenho das funções de operador-projecionista de filmes, fabricante de adereços-diretor, fotógrafo, maquinista-construtor e figurinista-diretor), e a participação anual dos estudantes, na condição de jurados, em concursos de premiação de filmes franceses, ​​ como o César des Lycéens e o Prix Jean Renoir des Lycéens. O cinema, invenção dos irmãos Lumière, cumpre registrar, surgiu na França, no ano de 1895, o que, além de representar um importante marco histórico na trajetória do audiovisual, permite-nos compreender a dimensão identitária que a produção cinematográfica assume no patrimônio cultural francês, tendo, inclusive, o seu modelo artístico exportado para todo o mundo. Depreende-se, portanto, que o acentuado protagonismo do cinema francês no currículo nacional ​​ não pode ser traduzido meramente em valores econômicos.

   ​​​​ Por fim, em uma pesquisa sobre as concepções de jovens estudantes do Ensino Médio acerca do cinema europeu, Soto-Sanfiel, Villegas-Simón e Angulo-Brunet [44] analisaram, a partir de uma amostra que reúne 937 jovens de oito países que compõem a UE, os conhecimentos cinematográficos desses participantes em relação à produção nacional, europeia ou estrangeira. Os resultados apontaram que, em geral, os adolescentes identificam diferenças entre os dois tipos de cinema – europeu e estrangeiro-, porém, quanto aos gostos, eles preferem os filmes americanos, por exemplo, aos filmes europeus. Apresentam, ainda, uma atitude negativa quando questionados sobre os filmes de seus países.

 Em síntese, a maioria dos jovens europeus considerou que o cinema europeu possui qualidade inferior ao cinema americano. Conforme as próprias autoras do estudo ressaltaram, tais resultados são decorrentes dos processos de globalização e transnacionalização que têm levado à homogeneização das preferências do público mundial. Ademais, as identidades múltiplas e híbridas dos jovens, como explicam as referidas autoras, sobrepõem-se, por vezes, às questões locais ou nacionais, o que faz com que esse segmento da população estabeleça ​​ afinidades, por exemplo, com culturas estrangeiras, em detrimento de seus respectivos valores regionais. ​​ 

O letramento cinematográfico, enquanto categoria de análise, ​​ não faz parte do escopo da presente investigação, todavia, situá-lo, no campo de estudo dos letramentos sociais, permite-nos aferir a crescente importância que os conteúdos audiovisuais, em particular, as narrativas cinematográficas, têm assumido na arquitetura das políticas educacionais, seja no plano regional ou global. Nesse sentido, o programa Europa Criativa, que incentiva e apoia iniciativas voltadas para o desenvolvimento do letramento cinematográfico, argumenta positivamente em favor de práticas cinematográficas ao longo da escolarização básica.

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4. Considerações finais

 Em termos normativos, no Brasil, a Lei n.º 13.006/2014, que acrescenta o §8º ao artigo 26 da LDB (Brasil [45]), determina que a exibição de filmes de produção nacional deverá compor o currículo complementar da Educação Básica, sendo obrigatória, nas instituições escolares, a veiculação de 2h mensais, no mínimo. Entretanto, os mecanismos para institucionalização da exibição do cinema nacional nas escolas brasileiras ainda aguardam a aprovação de dispositivos legais e financiamento.  Não há uma política educacional, por ora, que disponibilize às instituições escolares públicas uma plataforma de streaming ou download dos filmes, tampouco uma comissão ou curadoria que classifique as obras por faixa etária, temas e séries ou anos correspondentes. Ou seja, as exibições são realizadas por livre iniciativa de docentes e/ou gestores/coordenadores escolares, sem configurar, necessariamente, um trabalho sistêmico.

Não obstante os referidos obstáculos, é inegável que a presença da narrativa cinematográfica em sala de aula mobiliza uma série de competências e habilidades de natureza interdisciplinar. Na área de Linguagens e suas Tecnologias, mais especificamente, destaca-se a possibilidade de ampliar a capacidade de expressão, seja nas habilidades de recepção ou produção do conteúdo cinematográfico. Em Língua Portuguesa, desenvolve-se o trabalho com a memória discursiva, explorando, de modo intercultural e significativo, as inúmeras possibilidades de configuração de autorias.

Assim, do ponto de vista dos letramentos sociais, em que escrita e oralidade constituem modalidades permanentemente relacionadas, o debate oral e a leitura/escrita, promovidos a partir da multissemiose dos filmes, mesmo no ambiente monitorado da sala de aula, são desenvolvidos de forma consistente, em articulação com os repertórios socioculturais dos estudantes. Desse modo, vislumbra-se, outrossim, a construção de afinidades entre a apreciação do artefato cinematográfico e as representações juvenis, cujos resultados podem ser materializados em estratégias discursivas persuasivas, sobretudo no nível macrotextual.

 

5. Declaração de direitos ​​ 

 O(s)/A(s) autor(s)/autora(s) declara(m) ser detentores dos direitos autorais da presente obra, que o artigo não foi publicado anteriormente e que não está sendo considerado por outra(o) Revista/Journal. Declara(m) que as imagens e textos publicados são de responsabilidade do(s) autor(s), e não possuem direitos autorais reservados à terceiros. Textos e/ou imagens de terceiros são devidamente citados ou devidamente autorizados com concessão de direitos para publicação quando necessário. Declara(m) respeitar os direitos de terceiros e de Instituições públicas e privadas. Declara(m) não cometer plágio ou auto plágio e não ter considerado/gerado conteúdos falsos e que a obra é original e de responsabilidade dos autores.

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1

Universidade Federal do Piauí, Teresina/PI, Brasil

2

Universidade Federal do Piauí, Teresina/PI, Brasil

3

​​ Bakhtin22, ao examinar a poética de Dostoiévski, desenvolveu o conceito de polifonia, que pode ser traduzido como o entrecruzamento de vozes, dialógicas e discursivas, que se consubstanciam nas expressões textuais-interativas dos sujeitos.

4

​​ Tradução da autora: “Exibição de filmes e outros conteúdos audiovisuais nas Escolas Europeias: obstáculos e boas práticas”.

 

 


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