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ISSN: 2595-8402

Journal DOI: 10.61411/rsc31879

REVISTA SOCIEDADE CIENTÍFICA, VOLUME 7, NÚMERO 1, ANO 2024
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ARTIGO ​​ ORIGINAL

A função do Sistema Interamericano de Direitos Humanos: trata-se de um sistema simbólico ou um sistema que busca a concretização da dignidade do homem, caracterizando a cultura de paz?

Rafael Lima Rangel Vasconcelos1

 

Como Citar:

VASCONCELOS, Rafael Lima Rangel. A função do sistema interamericano de Direitos Humanos: trata-se de um sistema simbólico ou um sistema que busca a concretização da dignidade do homem, caracterizando a cultura de paz? Revista Sociedade Científica, vol.7, n.1, p.1822-1840, 2024.

https://doi.org/10.61411/rsc202440617

 

DOI: 10.61411/rsc202440617

 

Área do conhecimento: Direito.

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Sub-área: Direito constitucional.

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Palavras-chaves: Direito; sistema interamericano de direitos humanos; eficácia.

 

Publicado: 05 de abril de 2024.

Resumo

O presente artigo aborda a análise do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, a fim de verificar as suas nuances, o seu processo de criação, a sua finalidade, seus objetivos e, sobretudo, se trata-se de um sistema simbólico, criado somente para ofertar uma resposta à sociedade ou se trata-se de um sistema que garante a eficácia dos Direitos Humanos, com o objetivo de ampliar o campo de aceitação, bem como de concretizar o respeito aos Direitos Humanos, à luz dos diálogos institucionais. A partir desse trabalho, se verificará o que ocorre dentre as duas hipóteses mencionadas e qual seria o posicionamento do Brasil quanto a essas posturas. A metodologia utilizada é o método qualitativo, com a utilização e análise de bibliografias e artigos científicos ligados às temáticas abordadas. No primeiro capítulo, será analisado o Sistema Interamericano de Direitos Humanos e a participação do Brasil neste. Já o segundo capítulo trata de analisar a função do referido sistema. Por sua vez, o terceiro capítulo analisa a temática central do presente artigo, qual seja a verificação se o sistema trata-se de um sistema simbólico ou se realmente visa resguardar os Direitos Humanos e fundamentais do indivíduo, caracterizando o que se chama de cultura de paz.

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1.Introdução

O presente artigo tem como premissa inicial a análise do Sistema Interamericano de Direitos Humanos e de suas características, para posteriormente verificar se trata-se de um sistema simbólico ou que realiza o devido resguardo da dignidade da pessoa humana e dos direitos humanos.

Para o referido estudo, será utilizada a metodologia qualitativa, através da análise de outros artigos científicos, bem como da legislação que trata acerca da matéria.

No primeiro capítulo, será analisado o Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH) e a participação do Brasil no referido sistema, com a análise das características do sistema e das peculiaridades que dizem respeito à essa participação.

No segundo capítulo, será analisado o Sistema Interamericano de Direitos Humanos de forma mais geral, com as suas características, a exemplo da verificação se trata-se de um sistema de diálogo aberto, dentre outras questões.

Por fim, no terceiro capítulo, o estudo será voltado para a temática central do trabalho, qual seja a verificação se o Sistema Interamericano de Direitos Humanos trata-se de um sistema simbólico que visa oferecer uma mera resposta aos problemas jurídicos ou se realmente visa a concretização da dignidade da pessoa humana, caracterizando o que se chama de cultura de paz.

Neste capítulo, serão verificados elementos caracterizadores do SIDH, bem como um breve estudo acerca da cultura de paz.

Desse modo, passa-se à discussão das temáticas aqui expostas.

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2.Desenvolvimento e discussão

2.1O sistema interamericano de direitos humanos e a participação do brasil no referido sistema

O presente trabalho tem como premissa inicial a análise do Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH) e suas peculiaridades, para posteriormente verificar-se a função do referido sistema, no que diz respeito à concretização da dignidade da pessoa humana.

O SIDH é composto pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.

O início do referido sistema se deu através da criação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, no ano de 1959. Ela tem como função a análise prévia dos casos, de forma que cabe à Comissão a realização da análise de admissibilidade e de determinação de medidas prévias ao país para que tome as medidas adequadas, visando sanar a irregularidade.

Por sua vez, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos foi criada em 22 de novembro de 1969. Com a convenção, foi criada a Corte Interamericana de Direitos Humanos. A referida convenção passou a vigorar no ano de 1978.

Já o Brasil, realizou a ratificação da submissão à jurisdição do Sistema Interamericano em 10 de dezembro de 1998, de modo que, a partir disso, passou a ser submetido à competência do SIDH.

De acordo com Piovesan [5], os sistemas universal e regional complementam-se, interagindo ainda com o sistema nacional de proteção, buscando proporcionar a maior efetividade possível na tutela e promoção dos direitos e liberdades fundamentais.

A sistemática internacional é uma forma adicional de proteção. O Sistema Interamericano é acionado quando o Estado falhar ou se omitir no dever de implementar os direitos humanos. O sistema é considerado bifásico, vez que é composto pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Dentro do Sistema Interamericano, iniciando pela Comissão, a tramitação de um caso se dá da seguinte forma: Denúncia → Admissibilidade → Abertura formal do caso → Tentativa de conciliação pela Comissão (entre as vítimas e o Estado) → na hipótese de não realização da conciliação, o órgão elaborará um relatório conclusivo, com recomendações que, caso não sejam cumpridas, resultará na submissão do caso à Corte.

Perante o referido sistema, o Brasil possui um bom número de cumprimento das medidas, de modo que, em meados de 2014, foi realizada pesquisa quanto aos casos e os números eram os seguintes: 5 casos contenciosos com 4 condenações (casos Damião Ximenes, Escher e outros, Garibaldi Alves e “Guerrilha do Araguaia”); 1 absolvição (caso Nogueira de Carvalho); 17 casos com recomendações aceitas indicadas pela Comissão; e 2 soluções amistosas perante a Comissão Interamericana (casos Meninos Emasculados do Maranhão e José Pereira).

Isso demonstra, portanto, que há um maior número de recomendações que foram adotadas pelo Brasil, respeitando a função e a jurisdição do Sistema Interamericano de Direitos Humanos.

No entanto, isso não quer dizer que as irregularidades não ocorram ou estão totalmente solucionadas. Trata-se somente de alguns casos que chegaram ao conhecimento da Corte e que foram solucionados de alguma forma pelo Brasil. Noutros casos, não houve o devido cumprimento das decisões, a ponto de afirmar-se que o caso foi solucionado.

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3. A função do sistema interamericano de direitos humanos

Para entender-se como funciona o SIDH e a sua importância para os países que compõem o sistema, se faz necessário remeter-se ao fato de que a cultura jurídica latino-americana tem adotado um paradigma jurídico fundado em 3 (três) características, são elas:

a) a pirâmide com a Constituição no ápice da ordem jurídica; b) o hermetismo de um Direito purificado, com ênfase no ângulo interno da ordem jurídica e na dimensão estritamente normativa; c) O State approach, sob um prisma que abarca os conceitos estruturais e fundantes a soberania do Estado no âmbito externo e a segurança nacional no âmbito interno, tendo como fonte inspiradora a “lente ex parte principe”. [5]

Verifica-se, portanto, que se trata de um sistema voltado para o direito interno, sem vislumbrar o fato de existir um direito de ordem internacional comum a todos os países.

Desse modo, esse paradigma encontra-se atualmente em crise. Por isso, há a emergência na cultura jurídica latino-americana da adoção de novo paradigma com as três características essenciais a seguir (PIOVESAN, 2015):

a) O trapézio com a Constituição e os tratados internacionais de um direitos humanos no ápice da ordem jurídica (com repúdio a um sistema jurídico endógeno e auto-referencial):

As constituições latino-americanas estabelecem cláusulas constitucionais abertas, que permitem a integração com a ordem constitucional e a ordem internacional.

No Brasil, os tratados de Direitos Humanos ainda possuem natureza supra-legal, com hierarquia constitucional.

Já no Peru, anteriormente era de forma semelhante à do Brasil. Atualmente, os preceitos constitucionais devem guardar obediência à Declaração Universal de Direitos Humanos.

Na Colômbia, os direitos humanos previstos na Constituição serão interpretados em conformidade com os tratados. O mesmo ocorre no Chile.

Demonstra-se, portanto, uma forte influência dos tratados internacionais na criação da Constituição e dos direitos internos dos países.

b) A crescente abertura do Direito – agora “impuro” -, marcado pelo diálogo do ângulo interno com o ângulo externo (há a permeabilidade do Direito mediante o diálogo entre jurisdições, empréstimos constitucionais, interdisciplinariedade, etc).

Exemplo: no Brasil, crescente é a realização de audiências públicas pelo STF (Supremo Tribunal Federal) para tratar de matérias sociais de grande complexidade e elevado impacto social.

c) O human rights approach, sob um prisma que abarca como conceitos estruturais e fundantes a soberania popular e a segurança cidadã no âmbito interno, tendo como fonte inspiradora a “lente ex parte populi”, radicada na cidadania e nos direitos dos cidadãos.

É nesse sentido que Luigi Ferrajoli defende a ideia do constitucionalismo mundial, o qual tem por referência estrutural a dignidade humana. Nesse mesmo sentido, se posiciona o jurista José Joaquim Gomes Canotilho.

Na América-latina, os direitos humanos surgiram numa época de regimes ditatoriais e na transição aos regimes democráticos. Por essa razão, são decididos pela Corte Interamericana temas como: 1) violações que refletem o legado do regime autoritário ditatorial; 2) violações que refletem questões de justiça de transição; 3) violações que refletem desafios acerca do fortalecimento de instituições e da consolidação do Estado de Direito (rule of law); 4) violações de direitos de grupos vulneráveis; 5) violações a direitos sociais.

Ao exercer o controle da convencionalidade, conclui-se que a Corte Interamericana, por meio de sua jurisprudência, permitiu a desestabilização dos regimes ditatoriais na região latino-americana; exigiu justiça e o fim da impunidade nas transições democráticas; e agora demanda o fortalecimento das instituições democráticas com o necessário combate às violações de direitos humanos e proteção aos grupos mais vulneráveis.

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4. O sistema interamericano de direitos humanos: trata-se de um sistema simbólico que visa oferecer uma mera resposta aos problemas jurídicos ou que visa a concretização da dignidade da pessoa humana, caracterizando a cultura de paz?

Conforme anteriormente visto, a função do sistema é apaziguar/solucionar conflitos internos ou externos ao país, nos quais há o desrespeito aos Direitos Humanos.

A função primordial do sistema é a busca pela observância dos Direitos Humanos. Na prática, é isso que ocorre?

Os Direitos Humanos tratam-se de uma criação simbólica (fictícia) de direitos, visando a diminuição de conflitos e do desrespeito aos referidos direitos, visto que, através da legislação interna, os referidos conflitos não eram diminuídos/solucionados.

Essa função dos Direitos Humanos diz respeito a uma espécie de elemento da cultura de paz, a qual diz respeito a um conjunto de regras ou condutas que incentivam a não utilização/prática de qualquer tipo de violência, visando a diminuição e extinção da cultura de violência na sociedade, por qualquer maneira que se manifeste.

A paz pode ser promovida através da realização de transformações. Significa saber ver em profundidade, saber ouvir, sentir, parar e perceber o que está ocorrendo em cada situação. Desacelerar para receber a paisagem, que paisagem construímos a cada momento, e lugar, e como podemos mudar a paisagem mental.

A paz começa onde termina a vontade de extermínio, momento em que o indivíduo reconhece que não podemos separar entre bons e ruins; todos nós estamos enredados, como a teia ecológica em suas várias expressões, pois a vida é movimento e, portanto, conflito e suas resoluções.

De acordo com o autor Sandro Sayão [6], há que se pensar a paz em meio à diversidade:

Há que se pensar a paz em meio à diversidade, em meio às diferenças, em meio à multiplicidade de sentidos e possibilidades. Isso porque a vida é múltipla, feita de infinitas formas. No entanto, se algo nos deve guiar, se viver exige também um certo referencial orientador, há que se pensar num referencial que não nos oprima, que não nos avilte ou formate.

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É preciso, portanto, optar por aquilo que venha a nutrir e estimular a paz. Esta é um elemento caracterizador dos Direitos Humanos, os quais buscam a solução dos conflitos existentes e, com isso, a inexistência destes conflitos que estão relacionados ao desrespeito aos direitos humanos.

Ainda de acordo com o autor [6], a solução para a superação dos aspectos totalitários seria o que aponta Emmanuel Levinas, qual seja a “superação, pouco a pouco, da atmosfera de valores que nos fazem indiferentes e insensíveis uns aos outros, estimulando o olhar atento para a dor e as necessidades dos que nos cercam”.

Portanto, entende-se que o Sistema Interamericano de Direitos Humanos busca a resolução e a aniquilação dos conflitos relacionados aos Direitos Humanos, de forma que é considerado um mecanismo de estímulo da cultura de paz.

Desse modo, constata-se, a partir do que já foi visto, que o SIDH foi criado para solucionar os casos de conflitos que não são solucionados pelo estado de origem, com o objetivo principal de extinguir esses conflitos, de modo a proporcionar a cultura de paz.

No entanto, é de fundamental importância mencionar que, para que os conflitos sejam solucionados, ocorre uma espécie de diálogo entre o Sistema Interamericano e o país responsável pelo cumprimento da medida, de modo que o diálogo funciona como um modo de interação entre órgãos que tem em suas mãos o potencial de tomar decisões que afetam milhares de pessoas e podem mudar radicalmente a trajetória da proteção de seus direitos de um momento para outro.

De acordo com Luiz Guilherme Arcaro Conci [1], é preciso que os países e seus respectivos tribunais estejam atentos e com uma mentalidade aberta para como o outro decide, de modo que devem ser considerados os erros e acertos de cada decisão:

Estar atento e com uma mentalidade aberta para o modo como decide outro tribunal deve ser parte das preocupações daqueles que têm no processo judicial não somente um conflito a resolver, mas um elemento que faz parte de uma grande conjugação de questões que merecem levar em conta os erros e acertos daqueles que já tiveram em suas mãos tais questões.

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O motivo da realização dos diálogos é decidir cada vez melhor e de forma mais eficaz.

Em matéria de direitos humanos deve prevalecer uma perspectiva substancialista da proteção humana.

A centralidade do constitucionalismo da pessoa humana, inaugurado no pós-guerras, fez com que também o estado e as instituições internacionais deixassem de se focar em análises meramente estruturais para aplicação do direito para se entenderem no sentido de que a pessoa humana, como centro das atenções desse constitucionalismo renovado, deve ser prestigiada, independentemente da origem das normas para a sua proteção, deve ser o objeto central da proteção estatal.

Atualmente, ocorre um processo de integração com o aprofundamento da utilização dos direitos humanos como instrumentos centrais de um processo de aproximação entre estados nacionais, e suas ordens jurídicas, com o objeto essencial de proteção da pessoa humana. O foco central é a dignidade da pessoa humana, princípio basilar dessa relação entre estados nacionais.

Esse diálogo de ordem transnacional exige que as cortes nacionais e internacionais se percebam como atores de um processo de integração em matéria de direitos humanos, trocando experiências, teorias e modos de interpretar dispositivos.

Os direitos humanos no plano internacional devem funcionar não somente como conformadores dos textos constitucionais, mas também devem nortear o processo decisório dos juízes nacionais.

Os tratados de Direitos Humanos podem influenciar de modo fraco ou forte. Ocorrerá de modo fraco quando eles fornecem referenciais decisórios para reforçar o que já está posto, de modo a confirmar o julgamento. Já de modo forte, quando os tratados devem ser levados em consideração na interpretação do direito nacional, seja porque a própria Constituição determina isso, seja porque existe uma presunção de que o direito nacional não pode ser interpretado de modo conflitante com o internacional.

Atualmente, ocorre um processo de superação de modelos cerrados por fronteiras nacionais para uma abertura crítica para o debate entre autoridades que decidem no plano interno e internacional.

Muitos problemas são comuns à Cortes nacionais e internacionais, de modo que uma ou outra pode chegar numa conclusão mais adequada.

A utilização de argumentos advindos de outras cortes (nacionais ou internacionais) não significa subserviência, visto que o contato deve se dar de maneira horizontal. Trata-se, em verdade, de um intercâmbio de experiências e decisões para melhor decidir acerca da controvérsia jurídica.

No entanto, o diálogo não significa aceitação do que decide outra corte. Inclusive, pode-se levar justamente ao contrário (diálogo negativo), negando-se a correção do decidido por outra corte ou confrontando-se os fundamentos utilizados de modo a atacar a higidez da decisão comentada.

A legitimação do diálogo se afirmará a partir do reconhecimento por parte da comunidade jurídica.

Na aplicação desse diálogo, deve-se levar em consideração diversos elementos que podem ser influenciados, devendo haver a devida preocupação com argumentos econômico-financeiros, políticos, de relações internacionais, sociais, culturais, étnicos, dentre outros.

Quanto à abertura para o diálogo, o autor Luiz Guilherme Arcaro Conci [1] traz três classificações previstas para os Tribunais.

A primeira classificação diz respeito aos tribunais abertos ao diálogo, que são aqueles que veem na jurisprudência tanto de outros tribunais nacionais quanto internacionais significante material para o processo de fundamentação de suas decisões, percebendo tais elementos como fórmulas consideráveis para legitimar o que decidem por tratarem de temas que são concomitantemente veiculados.

Por sua vez, a segunda classificação é a dos tribunais medianamente dialogantes, que são aqueles que, apesar de perceberem a jurisprudência alheia como importantes elementos, não têm o costume de utilizá-la corriqueiramente e não sentem falta disso tendo em vista que não entendem necessário um aprofundamento de seus julgados com esse material estrangeiro, que lhes serve algumas vezes.

Já a terceira e última classificação é a dos tribunais reticentes ao diálogo, que são aqueles que se posicionam de forma muito receosa quanto aos impactos dessa jurisprudência em seus julgados, de forma a não terem-na como elementos importantes no processo de legitimação de suas decisões. Mantém um olhar cerrado a respeito do processo de legitimação ainda autorreferente de suas decisões.

Para a análise em comento, ainda é necessário se fazer uma leitura da importância com que essas decisões são utilizadas pelos tribunais nacionais, ou como essa interação entre cortes ocorre.

De acordo com Luiz Guilherme Arcaro Conci [1], essa leitura é subdivida em três grupos:

1º) A subserviência entre tribunais: ocorre quando um deles observa a outro tribunal como um norteador dos seus julgados, seguindo-o de forma inconteste. Não se dispõe a contestar os argumentos ou a coerência da sua utilização. Somente tem como vinculante o nascedouro da decisão.

2º) A interação aberta: os tribunais trocam experiência no tempo, observando o fazer um do outro, o modo como vem tratando de temas que são objeto de suas decisões, para construir um processo de fundamentação em rede. Este tipo de processo vem ocorrendo na América Latina com a interação entre a Corte Interamericana de Direitos Humanos e tribunais da Colômbia, do México, da Costa Rica e da Argentina, principalmente.

3º) Bricolagem: As citações dos outros tribunais ocorrem sem qualquer adaptação ou desenvolvimento de argumentos, são meras referências que operam no campo numérico (mais citações, mais pesquisa ou erudição) mas que servem, ao final, como meros apoios unilaterais ao que se pretende decidir. Às vezes, inclusive, são desnecessárias, equivocadas ou mesmo superadas nos tribunais de origem.

Essas citações não têm a pretensão de esgotar o enfrentamento do tema. Servirão somente para entender-se como ocorre o contrato do STF com o SIDH.

Importante se faz mencionar que não basta somente a perspectiva dialogante, mas também de que modo essa relação deverá ocorrer. Desse modo, deve-se discutir a prevalência da norma de Direitos Humanos em relação à Constituição e vice-versa.

Sempre deverá ser aplicado o princípio pro homine, devendo prevalecer a norma/decisão mais expansiva, independentemente do status hierárquico interno que adquirem tratados internacionais de direitos humanos, norma essa que decorre do artigo 29 da Convenção Americana de Direitos Humanos [3], o qual prevê:

Artigo 29.  Normas de interpretação

Nenhuma disposição desta Convenção pode ser interpretada no sentido de:

a. permitir a qualquer dos Estados Partes, grupo ou pessoa, suprimir o gozo e exercício dos direitos e liberdades reconhecidos na Convenção ou limitá-los em maior medida do que a nela prevista;

b. limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos de acordo com as leis de qualquer dos Estados Partes ou de acordo com outra convenção em que seja parte um dos referidos Estados;

c. excluir outros direitos e garantias que são inerentes ao ser humano ou que decorrem da forma democrática representativa de governo; e

d. excluir ou limitar o efeito que possam produzir a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e outros atos internacionais da mesma natureza.

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Faz-se necessária uma análise aprofundada do conteúdo decidido pela Corte IDH ou do que contém um tratado ou instrumento internacional de direitos humanos para que seja o juiz nacional, seja o juiz da Corte IDH, ou outras autoridades que tenham a função de administrar justiça. Todos devem aplicar o direito convencional. Trata-se de um diálogo crítico.

Caso a proteção seja mais efetiva em âmbito nacional, esta deve prevalecer, ainda que existam precedentes da Corte IDH ou normas jurídicas derivadas de tratados ou outros instrumentos internacionais.

Caso a Corte IDH esteja a decidir um caso em que se analisa a proteção de um direito em âmbito nacional se dá de modo mais eficiente que aquele derivado do sistema americano de direitos humanos, ela deve abster de declarar inconvencional o ato nacional em análise.

A Corte IDH tem procedido a essa tentativa de diálogo com as mais altas cortes nacionais nos mais variados temas. Isso fica evidente, por exemplo, no julgamento do caso Gomes Lund v. Brasil, em que a CIDH afirma posições de diversos tribunais nacionais sobre o tema das leis de anistia existentes no Uruguai, Chile, El Salvador, Peru, Argentina e Haiti.

É importante ressaltar que inexiste relação vertical entre a Corte IDH e os tribunais nacionais. Não existe supremacia hierárquica automática das decisões tomadas pela Corte IDH em detrimento daquelas nacionais.

Não há que se falar em soberania, vez que o foco está no indivíduo, conforme já vimos. Não há soberania bastante para proteger com déficit os direitos fundamentais ou humanos da pessoa humana.

Há a prevalência da norma jurídica que seja mais eficaz na proteção dos direitos do indivíduo.

A prudência entre os atores envolvidos e a abertura a um diálogo constante são os meios de resolução do relacionamento que, em alguns momentos, pode se tornar conflitivo.

Tanto no Brasil quanto em outros países da América Latina, percebe-se um aumento do relacionamento intelectual entre as cortes nacionais e a Corte IDH. No entanto, isso não significa uma melhora da qualidade da proteção dos direitos humanos no plano nacional a partir desse diálogo, pois há, ao lado de avanços, retrocessos firmes.

Segundo Flávia Piovesan [5], no que diz respeito à influência das decisões da Corte Interamericana quanto ao direito interno, há de se destacar o fenômeno que ocorre na Argentina, a qual mencionou o seguinte:

No âmbito da Argentina, com relação às decisões judicais proferidas pela Corte Suprema, até novembro de 2009, constatou-se um significativo universo de 42 decisões que conferem aplicação doméstica aos tratados de direitos humanos, em especial aos dispositivos da Convenção Americana de Direitos Humanos, aplicando a jurisprudência da Corte Interamericana.

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A Corte Suprema de Justiça Argentina reconhece que a jurisprudência da Corte IDH deve servir de guia para a interpretação dos preceitos convencionais.

No Brasil, verificou-se que se utiliza o método da bricolagem. Não se encontra, em nenhum dos julgados, qualquer referência ao tema do bloco de convencionalidade.

Os temas em que os julgados da Corte IDH apareceram na jurisprudência do STF são os seguintes: lei de anistia (ADPF 153); direito à vida (ADI 4277); exigência de diploma para o exercício da profissão de jornalista (RE 511.961); competência da justiça militar (HC 109.544 MC, dentre outros); garantia de assistência consular para presos estrangeiros (Ext. 1126); garantia processual do julgamento por um segundo colegiado (AP 470) e direitos indígenas (Pet 3338).

Da leitura dos referidos julgamentos, se depreende que as manifestações do STF a respeito de precedentes da Corte IDH se prestam a mero reforço argumentativo, não se podendo falar em nenhuma diferença persuasiva.

O referido Tribunal ignora a doutrina do controle de convencionalidade desenvolvida pela CIDH. O STF é altamente permeável a argumentos utilizados em tribunais de outros países, mas ignora a jurisprudência dos tribunais vizinhos.

No que tange aos casos e a resolução dos conflitos, é de fundamental importância mencionar que diversas medidas são determinadas pela Comissão Interamericana e pela Corte Interamericana no sentido de solucionar a problemática no país que está respondendo pelo procedimento perante a Corte.

Exemplo é que, em alguns casos, eles determinam que, além de se pagar uma indenização pelo ocorrido, haja uma retratação pública, bem como a solução efetiva do desrespeito e até a modificação de Constituição ou legislação para que haja a verdadeira adequação.

Sobre exemplo de solução efetiva, podemos mencionar o caso acerca do Complexo Prisional do Curado, no qual o SIDH determinou a diminuição da superlotação de presos, bem como a contratação de profissionais de saúde para que melhor cuidassem daqueles que se encontram reclusos no Complexo do Curado.

A solução efetiva é diminuir a superlotação, através do não ingresso, bem como da realocação de presos para outros locais, o que não significa que resolverá o problema, mas tem o papel de realizar a readequação das prisões e da legislação no Brasil.

Outros bons exemplos também podem ser mencionados, a respeito da Comissão da Verdade e da investigação e responsabilização de responsáveis pelo cometimento de delitos.

Embora não haja o efetivo cumprimento pelo Brasil acerca da responsabilização de pessoas que cometeram crime há vários anos atrás, sobretudo pela falta de aparato para identificar todos os responsáveis e os atos que cometeram, a decisão serve de lição para que o que já ocorreu nunca mais venha a ocorrer e, se por acaso alguém vier a cometer algum tipo de delito semelhante, seja devidamente investigado e responsabilizado por aquilo que cometeu.

Além desses casos, cumpre mencionar o caso Maria da Penha, que foi submetido à Comissão Interamericana de Direitos Humanos e, através de sua atuação, conseguiu que o Brasil formulasse uma legislação de proteção às mulheres, de modo que esta foi criada e devidamente implantada e, atualmente, protege diversas e inúmeras mulheres que são vítimas de violência diária. Eis um exemplo, dentre diversos, de uma medida que foi devidamente criada e viabilizada na prática.

Outro caso à título de exemplo diz respeito ao povo indígena Xucuru, através do qual a Corte determinou ao Brasil que garanta “de maneira imediata e efetiva”, o direito de propriedade deste povo, bem como que conclua a retirada de indivíduos não indígenas das terras mediante o pagamento de indenizações pendentes e pague indenização por danos causados pela demora em demarcar terras.

A partir de uma rápida análise dos casos que tramitaram pela Corte, nota-se que a principal dificuldade do governo em cumprir as sentenças está na obrigação de investigar os fatos e de responsabilizar os violadores dos direitos humanos no âmbito penal.

A motivação disso se dá em razão da dificuldade de cooperação e coordenação entre esferas de governo no âmbito interno; um Poder Judiciário que, em decorrência da grande quantidade de demandas, não permite uma maior celeridade na tramitação das ações; a falta de articulação entre essa função do poder e as demais; e as dificuldades impostas pela legislação interna.

Todavia, o Estado jamais poderá alegar a existência de uma disposição de direito interno ou a sua estrutura federal como motivos que justifiquem o descumprimento de uma obrigação internacional. Isso foi determinado através do Caso Garrido e Baigorria vs. Argentina.

Em razão da obrigação dos países submetidos à competência do sistema de observarem as decisões contra os outros países e também seguirem as diretrizes de forma preventiva faz com que o Brasil não possa alegar qualquer das motivações constantes acima, sob pena de ser devidamente responsabilizado pela não observância da decisão do SIDH.

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5.Considerações finais

Conforme o exposto, pode-se concluir que o Sistema Interamericano de Direitos Humanos permite o exercício efetivo da cidadania, a qual ultrapassa as fronteiras nacionais.

Entretanto, não obstante a sua importância para a tutela dos direitos fundamentais e a vinculação do Estado brasileiro às suas determinações, os membros do Poder Judiciário ainda não são preparados para a utilização do referido sistema, o que faz com que as diretrizes ainda não sejam totalmente observadas pelo país submetido à jurisdição do SIDH.

Na prática, os Estados devem adotar todas as medidas necessárias a fim de adequar seu aparato governamental e seu ordenamento jurídico às disposições da Convenção Americana e aos posicionamentos do SIDH.

Verifica-se, portanto, que o Sistema Interamericano é considerado eficaz na sua função, na medida em que consegue fazer com que o país ratificador cumpra suas decisões, bem como adote posturas no sentido de se antecipar para evitar o descumprimento dos Direitos Humanos por meio de outros conflitos.

Havendo medidas efetivas que foram devidamente concretizadas, pode-se dizer que o sistema atinge a sua finalidade na proteção dos Direitos Humanos, ainda que não seja total, de modo que sua função não é considerada somente simbólica, mas sobretudo concreta na proteção dos Direitos Humanos e na repressão daqueles que desrespeitarem os Direitos Humanos. Ou seja, há o devido alcance da cultura de paz, que é aquela através da qual se visa a resolução de conflitos sociais.

Trata-se de um sistema considerado recente, sobretudo porque só foi ratificado pelo Brasil em 1998. Diante disso, ainda há muito a ser feito, para que ocorra uma real e efetiva mudança na jurisprudência dos tribunais internos, a fim de que sigam o que dispõe o SIDH.

No caso brasileiro, não há, até meados de 2015, qualquer referência ao controle de convencionalidade, seja fruto de uma análise comparativa entre tratados internacionais, especialmente a Convenção Americana de DH e o direito interno, seja essa comparação feita a partir do bloco de convencionalidade, fixado pela CIDH e paradigma para o dito controle.

Entretanto, os diálogos institucionais entre o sistema e os tribunais brasileiros, sobretudo o Supremo Tribunal Federal, são considerados os caminhos para a definição e concretização do controle de convencionalidade, a fim de que possa haver um avanço maior no campo jurisdicional na observância dos Direitos Humanos e no que é decidido pela Corte, que pode, muitas vezes, ser utilizado como parâmetro para outras decisões e, consequentemente, outras resoluções de conflitos.

 

6. Declaração de direitos

O(s)/A(s) autor(s)/autora(s) declara(m) ser detentores dos direitos autorais da presente obra, que o artigo não foi publicado anteriormente e que não está sendo considerado por outra(o) Revista/Journal. Declara(m) que as imagens e textos publicados são de responsabilidade do(s) autor(s), e não possuem direitos autorais reservados à terceiros. Textos e/ou imagens de terceiros são devidamente citados ou devidamente autorizados com concessão de direitos para publicação quando necessário. Declara(m) respeitar os direitos de terceiros e de Instituições públicas e privadas. Declara(m) não cometer plágio ou auto plágio e não ter considerado/gerado conteúdos falsos e que a obra é original e de responsabilidade dos autores.

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7.REFERÊNCIAS

  • CONCI, Luiz Guilherme Arcaro. Diálogo entre Cortes e o controle de convencionalidade – algumas reflexões sobre a relação entre o Supremo Tribunal Federal e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. In: CONCI, Luiz Guilherme Arcaro; MEZETTI, Luca. (orgs). Diálogo entre Cortes. Brasília: Conselho Federal da OAB, 2015.

  • NASCIMENTO, Bianca Souto do; PEREIRA, Felipe Tôrres. A inserção do sistema interamericano de direitos humanos na prática jurídica nacional. In: CARDOSO, Fernando da Silva; CAVALCANTI, Maria de Fátima Galdino da Silveira; LUNA, Maria José de Matos (organizadores). Cultura de paz: gênero, sexualidade e diversidade. Recife: Editora UFPE, 2014.

  • PELIZZOLI, Marcelo L. Paz e conflito: visão sistêmico-fenomenológica. In: PELIZZOLI, Marcelo (org.). Cultura de paz: restauração e direitos. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2010.

  • PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e diálogo entre jurisdições. In: CONCI, Luiz Guilherme Arcaro; MEZETTI, Luca. (orgs). Diálogo entre Cortes. Brasília: Conselho Federal da OAB, 2015.

  • SAYÃO, Sandro Cozza. Direitos humanos e a paz: reflexões a partir de Emmanuel Levinas. In: CARDOSO, Fernando da Silva; CAVALCANTI, Maria de Fátima Galdino da Silveira; LUNA, Maria José de Matos (organizadores). Cultura de paz: gênero, sexualidade e diversidade. Recife: Editora UFPE, 2014.

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Mestrando no Programa de Pós-Graduação da Universidade Católica de Pernambuco. ​​ 

Trabalho realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, conforme a Portaria CAPES n° 206, de 4 de setembro de 2018


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